<i>«Vemos, ouvimos e lemos…»</i>

Jorge Messias

«O mar­xismo surgiu como con­sequência e apo­teose da ci­vi­li­zação in­dus­trial. A se­gre­gação do pro­le­ta­riado, do­mi­nado pela lei de bronze e pela im­pi­e­dosa ne­ces­si­dade de acu­mu­lação do ca­pital pri­vado, gerou o clima em que a visão he­ge­liana do mundo, apli­cada por Karl Marx, se trans­formou em dou­trina de acção e em fi­lo­sofia total do homem, da so­ci­e­dade e da vida»

(«Cris­ti­a­nismo e po­lí­tica na­ci­onal, Ma­ni­festo ao País», Maio de 1965).

 

«A fome apro­xima-se. Uma ca­tás­trofe de di­men­sões nunca vistas e a fome pa­recem ine­vi­tá­veis. Disto se falou nos jor­nais vezes sem conta, di­zendo que a ca­tás­trofe é ine­vi­tável, que está muito pró­xima, que é ne­ces­sária uma luta de­ses­pe­rada para a de­belar, que se exige do povo es­forços he­róicos para pre­venir o de­sastre, etc. Todos o dizem. Todos o re­co­nhecem. Todos o de­ci­diram. E não se faz nada…»

( «A ca­tás­trofe que nos ameaça e como com­batê-la», Le­nine, Obras Com­pletas, Se­tembro 1917).

 

Nos anos já re­cu­ados das dé­cadas de 60 e de 70 do sé­culo XX, fez-se notar e teve grande im­por­tância no com­bate aberto ao fas­cismo um co­ra­joso grupo de ca­tó­licos. Não de­pen­diam de qual­quer or­ga­ni­zação cen­tral, não es­tavam dis­postos «em rede», como ac­tu­al­mente é regra geral, nem dis­cu­tiam se­quer o di­reito à prá­tica da sua fé. Mas eram de­mo­cratas e im­pla­cá­veis no com­bate à ex­plo­ração do homem pelo homem. Por amor à ver­dade, cor­reram riscos imensos, foram per­se­guidos, de­mi­tidos e presos. Numa fase da nossa his­tória em que im­pe­ravam a po­lícia po­lí­tica, a ili­mi­tada ex­plo­ração dos tra­ba­lha­dores e o obs­cu­ran­tismo da Igreja, esses ho­mens e mu­lheres não se ca­laram. Es­cre­veram e as­si­naram com os seus nomes cartas abertas di­ri­gidas aos res­pon­sá­veis fas­cistas; con­de­naram as guerras co­lo­niais; de­nun­ci­aram com­por­ta­mentos das hi­e­rar­quias da ecle­siás­ticas; vi­eram para a rua pro­testar – quando isso era acto de re­ma­tada lou­cura – contra as guerras e contra a in­justa dis­tri­buição da ri­queza. A sua grande fonte ide­o­ló­gica foi o Con­cílio Va­ti­cano II mas par­ti­lhavam com os co­mu­nistas al­gumas das suas pers­pec­tivas bá­sicas da his­tória e da so­ci­e­dade. O homem e a li­ber­dade eram a sua grande ban­deira. E adop­taram, como se fosse um hino, uma canção de luta es­crita por um dos seus, a «Can­tata da Paz»: «Vemos, ou­vimos e lemos, não po­demos ig­norar: o nosso tempo é o tempo do pe­cado or­ga­ni­zado»…

 

Ontem e hoje, são apenas dois dias

 

Desde esses tempos apenas se ca­mi­nhou o es­paço de uma ge­ração. Que é feito, então, dos va­lo­rosos guer­ri­lheiros crentes que lu­taram antes de Abril? Onde param eles, as suas se­mentes con­fes­si­o­nais ou os ideais ca­tó­licos de Jus­tiça e Li­ber­dade? Não é de crer que, su­bi­ta­mente, se te­nham es­fu­mado para sempre. A ver­dade, porém, é que não estão vi­sí­veis. E a so­ci­e­dade, mesmo a de sen­tido re­li­gioso, não muda com as ideias mas com os actos.

Acerca disto, há uma ver­dade dura que deve ser dita.

Se, du­rante o fas­cismo, os ca­tó­licos que per­ma­ne­ceram ho­mens li­vres pro­cu­ravam ver, ouvir e ler as re­a­li­dades (e con­se­guiram-no, apesar de tudo), muito mais fácil seria aos seus fi­lhos, a ge­ração ci­ber­né­tica, al­cançar esse painel de in­for­mação. Mas são jus­ta­mente esses que emu­decem.

O Va­ti­cano está ato­lado até ao pes­coço no crime po­lí­tico or­ga­ni­zado. Do­mina os mais po­de­rosos off-shores do mer­cado fi­nan­ceiro e é agente ac­tivo dos grandes pólos de in­te­resses dos lóbis ca­pi­ta­listas, à imagem do Clube de Bil­der­berg. En­sina, na sua ex­tensa rede de co­lé­gios, ins­ti­tutos e uni­ver­si­dades, as ar­qui­tec­turas e os ardis do ne­o­ca­pi­ta­lismo a mi­lhões de jo­vens. Ma­ni­pula ex­tensas áreas so­ciais que apa­ren­te­mente são ge­ridas pelo Es­tado laico, como a Edu­cação, a Saúde e a Se­gu­rança So­cial. Per­ma­nece im­pá­vido pe­rante os es­cân­dalos que surgem em tor­rente no in­te­rior da pró­pria Igreja. É um mé­todo que convém aos seus pro­jectos. Em Por­tugal, à sombra dos pe­sa­delos da «crise eco­nó­mica», este pro­cesso de ins­ta­lação do es­tado te­o­crá­tico de­sen­volve-se aber­ta­mente.

Pe­rante o caos emi­nente, as elites ca­tó­licas calam-se e a hi­e­rar­quia finge que não vê. Os seus si­lên­cios tá­citos são formas ac­tivas de co­la­bo­ração com os crimes do ca­pi­ta­lismo mun­dial. Aliás, o grande ca­pital também mer­gulha em pro­blemas po­lí­ticos tão com­pli­cados que ele pró­prio é in­capaz de os re­solver. Assim, vê cada vez mais no Va­ti­cano a sua even­tual tábua de sal­vação.

Jus­ti­fica-se que se pense estar aqui, neste pa­no­rama real, a chave dos de­sen­con­tros que afastam ca­tó­licos e co­mu­nistas.



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